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Comunidades Terapêuticas em Sete Lagoas: solução ou sintoma do problema?
Durante a reunião ordinária da Câmara Municipal de Sete Lagoas, realizada em 03 de junho de 2025, um vereador levantou uma pauta urgente: a saúde mental e o acolhimento de pessoas em situação de dependência química. Em sua fala, ele propôs a realização de uma audiência pública para enfrentar o que já existe, articular os equipamentos públicos, acionar a rede de proteção e garantir o acesso ao cuidado. A proposta é legítima. Mas o conteúdo do discurso revela contradições que precisam ser debatidas com responsabilidade.
O vereador afirmou que Sete Lagoas realiza um trabalho que “pouquíssimas cidades do Brasil conseguiram organizar”. Segundo ele, existem hoje mais de 500 dependentes químicos acolhidos em comunidades terapêuticas no município, sem que o poder público arque com custos diretos. Essa fala levanta uma série de questionamentos:
Por que Sete Lagoas tem tantas comunidades terapêuticas?
Onde estão os serviços substitutivos, como os CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas)?
Se o cuidado é “sem custo público direto”, de onde vêm os recursos?
E, principalmente, o que isso revela sobre a atual política de saúde mental do município?
A resposta é preocupante. Tudo indica que Sete Lagoas está empurrando a saúde mental para fora da política pública, confiando o cuidado de pessoas em sofrimento psíquico e uso problemático de substâncias a entidades privadas que, em muitos casos, reproduzem uma lógica manicomial.
Vale lembrar que comunidades terapêuticas não integram a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e estão à margem da lógica do SUS. A crítica aqui não é à existência de comunidades, mas à substituição dos serviços públicos por instituições de confinamento, que priorizam abstinência forçada e, em muitas práticas, desrespeito à dignidade dos sujeitos — ainda que isso não se possa afirmar diretamente sobre as unidades de Sete Lagoas.
Quando o vereador afirma: “Isso mostra o tamanho da demanda”, ele revela, na verdade, a fragilidade da rede pública de atenção à saúde mental no município. A fala aponta, talvez sem intenção, a omissão do poder público em cumprir o que está previsto nas diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental: cuidado em liberdade, em rede, com acompanhamento contínuo e humanizado.
O vereador ainda compartilhou o relato de uma comunidade terapêutica que tentou encaminhar um acolhido em surto para um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mas não teve sucesso. Segundo ele, o mesmo ocorre com as equipes da Estratégia de Saúde da Família, que também não conseguem responder a essas demandas. Isso demonstra um desalinhamento entre as instituições e os fluxos oficiais da rede de saúde mental local. Afinal, se o município orienta que os atendimentos devem ser feitos pelas unidades de atenção primária ou pela urgência e emergência, por que isso não está funcionando?
Ao dizer que "não podemos deixar essas comunidades sozinhas", o vereador expressa preocupação — mas também desconhecimento sobre a luta antimanicomial, que justamente denuncia o isolamento, o confinamento e a desresponsabilização do Estado. E quando ele se refere à experiência de Sete Lagoas como “algo fora do comum”, é difícil não lembrar dos horrores do passado manicomial brasileiro, onde o isolamento social e o abandono institucional eram a regra.
Também é preciso desmistificar a ideia de que o acolhimento é “gratuito”. Muitas comunidades recebem recursos por meio de aposentadorias, BPC, benefícios sociais dos acolhidos ou doações da sociedade civil. O custo existe — o que não existe, muitas vezes, é o controle público sobre esse modelo.
A boa intenção do vereador é visível. Seu incômodo com a falta de respostas também. Mas isso não pode ser usado como justificativa para ampliar ou legitimar modelos de exclusão social. O que Sete Lagoas precisa é fortalecer sua Rede de Atenção Psicossocial, garantir serviços públicos de saúde mental eficazes, investir em CAPS, NASF, UBS integradas com a saúde mental, e formar profissionais com base nas diretrizes do SUS e da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Uma audiência pública pode, sim, ser um passo importante — desde que inclua usuários, familiares, profissionais e movimentos sociais. O cuidado em saúde mental não é caridade, é direito. Não é isolamento, é vínculo. Não é silenciamento, é escuta.
Sete Lagoas pode ser referência — mas não por repetir velhas práticas de exclusão.
Fala organizada:
"Senhor Presidente, gostaria de fazer um convite para que possamos requerer a realização de uma audiência pública com um objetivo muito claro: enfrentar o que existe, articular os equipamentos públicos, acionar a rede de proteção e garantir o acesso à saúde mental, de forma efetiva."
"Trata-se de um trabalho que Sete Lagoas realiza e que pouquíssimas cidades no Brasil conseguiram organizar. Hoje, temos aproximadamente mais de 500 dependentes químicos acolhidos em comunidades terapêuticas no município — sem que o poder público municipal arque com qualquer custo direto."
"Isso mostra o tamanho da demanda e, ao mesmo tempo, o esforço dessas instituições. No entanto, elas também precisam de apoio, especialmente nos momentos críticos. Nesta semana, por exemplo, fui procurado por uma comunidade cujo fundador relatou que um acolhido em surto buscou atendimento em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mas não conseguiu. O mesmo ocorre, muitas vezes, quando procuram as equipes da Estratégia de Saúde da Família."
"É preciso desburocratizar o acesso ao cuidado. Não podemos deixar essas comunidades sozinhas, especialmente quando realizam um trabalho que beneficia não só os acolhidos, mas toda a cidade."
"O que vislumbramos para Sete Lagoas e para a região é algo fora do comum, algo que poucas cidades no Brasil têm: uma rede de acolhimento ativa, mas que precisa ser fortalecida com apoio público."
"Por isso, reitero a importância dessa audiência pública. Que ela seja um espaço para debater, propor e facilitar o acesso à saúde mental, ao tratamento e à vida digna para quem enfrenta a dependência química e o alcoolismo. Muito obrigado."
By: Rute Alves
Link da reunião da Câmara Municipal abaixo:
https://www.youtube.com/live/8jTF8r6obsA?si=-u1DlmXX4AFhWGy1